Family Film Project

Arquivo, Memória, Etnografia
Festival Internacional de Cinema

O Family Film Project decorre anualmente no Porto desde 2012.

Dedicado a formas alternativas da expressão cinematográfica, o festival dá ênfase à dimensão experimental e arqueológica das imagens, procurando evidenciar os desafios do cinema na sua dupla faceta testemunhal e artística, seja através do cinema etnográfico-experimental, do cinema de arquivo e de found-footage, da reapropriação estética dos filmes caseiros ou da hibridização entre a arte cinematográfica e as artes performativas.

Além da habitual secção competitiva, o programa reserva sempre um espaço de destaque para realizadores, artistas e investigadores convidados de renome internacional, tais como Jonas Mekas (2012), Péter Forgács (2013), Alina Marazzi (2015), João Canijo (2016), Regina Guimarães (2017), Bill Nichols (2018), Daniel Blaufuks (2018), Jaimie Baron (2019), Cláudia Varejão (2019), Harun Farocki (2020), Ruben Östlund (2021), Catarina Alves Costa (2022), Naomi Kawase (2023), Ben Russell (2024), Jay Rosenblatt (2025), entre muitos outros.

As sessões da programação competitiva dividem-se tradicionalmente em três zonas temáticas: Vidas e Lugares (com enfoque na abordagem estética a quotidianos, habitats e biografias), Memória e Arquivo (dedicada à temporalidade e à apropriação poética de testemunhos e found footage) e Ligações (centrada nas dinâmicas relacionais, interpessoais e interculturais). Incluem-se também sessões competitivas nos géneros da Ficção e Animação.

Com diversas linhas de atuação, o festival coloca-se nas barreiras concetuais entre o cinema e outras artes e áreas de pensamento. Para além das sessões de cinema, o Family Film Project organiza vários tipos de eventos culturais paralelos: exposições e instalações (que podem prolongar-se para lá da data do festival), filmes-concerto, performances em locais diversos da cidade (Private Collection), masterclasses, conferências e lançamentos de livros focados na dimensão etnográfica, antropológica e estética do cinema e das artes.

Carta de Intenções

Assistimos atualmente a uma revolução profunda no modo de relacionamento com as tecnologias da imagem, equiparável ao florescimento do cinema durante a primeira metade do século XX ou à popularização da televisão e do vídeo durante a segunda metade. Tal como nas revoluções anteriores, o modo como desenhamos as nossas narrativas vivenciais e sociais foi fortemente abalado: de facto, é através das novas tecnologias digitais que, cada vez mais, construímos o nosso espelhamento, o nosso lugar, a nossa própria individualidade, seja através do que tornamos público, seja através do arquivo da intimidade.

A revolução em curso tem duas valências interligadas: do lado do consumo, assistimos à multiplicação exponencial dos ecrãs e das fontes mediáticas; do lado da produção, multiplicam-se os dispositivos de registo, de vigilância, de memória. Ambas as valências suscitam desconfianças: fala-se hoje de excesso de informação, de banalização e frivolidade das imagens, e fala-se também da ameaça de um sistema panótico generalizado. Mas a informação pode ser filtrada e o sistema panótico pode oferecer toda uma nova jazida experiencial, inclusive no campo da arte. Na era panótica, eis que surge uma oportunidade inédita para a estetização da experiência e da vida.

Como é evidente, esta inflexão não pode deixar de abalar um certo ascetismo do cinema, das suas linguagens e das suas instituições. O suporte videográfico deixou há muito de ser marginalizado pelo seu status funcionalista, tendo-se mesmo tornado um dos suportes mais característicos da pós-modernidade artística: os ecrãs disseminaram-se pelos espaços de exposição, fundando novas modalidades da arte, tornando-se eles próprios esculturas tecnológicas; e mesmo o uso mais descomprometido destes dispositivos – com o típico estilo amadorista e voyeurístico dos chamados vídeos caseiros – é continuamente apropriado e integrado no academismo cinematográfico, reeducando-o.

Acima de tudo, surgiram novas formas de contar histórias, novos olhares, novos acessos a domínios historicamente inacessíveis. Um desses domínios, talvez o mais insuspeito de todos, é o da família, aqui entendida não propriamente como zona temática, mas como metáfora da intimidade. A família desenha a última fronteira do privado: ela estende-se para além da sexualidade e da individualidade e pode mesmo expandir-se até assumir a forma de uma comunidade, mas retém sempre uma aura de interdição, de choque contra a alteridade e a publicidade. Daqui advirá porventura o fascínio que ela tantas vezes suscita. De um lado, constatamos a sua sacralidade, a sua força para deliberar a identidade e a propriedade; do outro lado, constatamos a sua erogenia natural, como um apelo cúmplice ao olhar voyeurístico por parte de quem não pertence à mesma domus, ao mesmo espaço familiar. Em suma, o erógeno liga-se ao confronto com a intimidade (alheia); e a intimidade, no seu sentido mais abrangente, converge com o conceito de família.

É este espaço de intimidade que está hoje a ser continuamente transgredido a partir de dentro pela avalanche de novos dispositivos e redes digitais. Contudo, não se trata propriamente de alertar aqui contra uma permissividade negligente das sociedades contemporâneas, e muito menos contra um cenário distópico de falência da intimidade: esta encontrará sempre o seu espaço próprio, mesmo que tenha de manter-se em constante deslocamento. Trata-se sim de caminhar sobre essa linha divisória entre o público e o privado, entre a alteridade e a identidade. É justamente o espaço tensional destas dicotomias – hoje governado por toda uma panoticotopia tecnológica – que nos importa aqui observar e destacar. Mas devemos fazê-lo sem que o nosso próprio olhar destrua o cenário observado. Ora, um olhar tão delicado, tão respeitador, só poderá ser estético.

Neste panorama, o Family Film Project surge como um ciclo de cinema focado na fronteira entre o público e o privado, entre o popular e o íntimo, entre o global e o local, mas também entre o mainstream e o alternativo, entre o dominante e o precário, ou ainda entre a performatividade (associada tendencialmente à ficção) e o registo documental (que tende a ser associado mais diretamente ao real). Ao colocar-se sobre a imensa linha divisória que atravessa estas zonas tensionais, o Family Film Project visa encontrar pontos de contacto, vias de entrosamento e comunicação, mas sem nunca se render a nenhum dos lados, sem se politizar. A linha que se pretende trilhar não é a fileira de um conflito, nem tão pouco constitui um problema teórico. Não se trata, por exemplo, de pensar o limiar entre o documentário e a ficção, ou de repensar o estatuto das produções independentes e dos vídeos amadores face ao cinema popular e ao blockbuster. Não se trata igualmente de apelar ao resgate dos valores da privacidade e da família, e muito menos de elegê-los enquanto temas concretos. O objetivo deste ciclo estará sempre ligeiramente recuado em relação a tais objetos e discussões, mesmo que também os envolva e acabe por solicitá-los. Trata-se, pelo contrário, de dar espaço a essa zona fértil, cada vez mais fértil, onde a vida se funde com o registo vivencial, onde o real é também performativo e a performance é também real, onde, enfim, a experiência mais íntima pode dar-se a ver sem que isso lhe destrua a intimidade.

Filipe Martins (setembro 2014)