Integrado num festival internacional de cinema sobre arquivo, memória e etnografia, o Family Film Project, este evento pretende desafiar artistas e teóricos a explorarem a performatividade a partir de material ou conceitos de arquivo pessoal ou de terceiros. À medida que as intimidades e familiaridades são problematizadas, projetam-se possibilidades criativas que cruzam disciplinas e fronteiras, reforçando, dentro do evento-festival, a ténue linha entre a vida real e a ficção.
Para esta edição, o Private Collection será dedicado ao pensamento de Foucault. A intenção é apresentar um conjunto de propostas performativas nos seus valores expandidos (interdisciplinaridade, deslocamentos espaciais, deslocamentos temáticos) capazes de dialogar com algumas das noções centrais de Foucault. O arquivo pressupõe o arquivista, mas como um “arqueólogo” que não busca conceitos gerais e abstratos, mas os analisa num jogo de aparecimento e deslocamento. O arquivo não é criado por um sujeito de conhecimento, mas sim nas múltiplas teias entre práticas culturais, sociais, políticas, económicas, subjetivas e históricas. O arquivo também informa sobre essa transformação, e os modelos adotados, uma vez identificados, adicionam mais significado. Narrativa e ficção entrelaçam- se porque a trama é densa e resiste à leitura.
Ao mesmo tempo que a performance afirma a sua radical efemeridade, cresce a demanda por documentar e arquivar as suas práticas em nome da pesquisa e historiografia da performance. O Private Collection questionará, no entanto, a relação da performance com o arquivo. Esta relação pode incluir o papel da performance na cultura do arquivo e o papel do arquivo nas conceptualizações da performance; o futuro da performance e do arquivo na era digital; o papel do documento na pesquisa sobre performance; e as práticas de arquivos de performers.
15 OUT | 17H00 | MUSEU NACIONAL SOARES DOS REIS | SALA DAS ESTÁTUAS | 50’
SUSANA CALÓ E GODOFREDO ENES PEREIRA
Um cineasta é chamado para filmar um hospital psiquiátrico. Decide dar a camara aos pacientes para serem eles a filmar a sua vida diária. Um grupo de pacientes oferece dinheiro a uma pessoa que sonha ser ciclista. Um cozinheiro que faz terapia na cozinha ao mesmo tempo que prepara as refeições. Uma cozinha que é também uma ópera. Uma creche em que as crianças é que mandam. Um motorista que nunca tirou a carta. Uma reunião semanal onde não se fala sobre nada. Um sistema de salários em que cada um recebe o que precisa. Uma lavandaria que é lugar de encontro. Dois investigadores que investigam a própria vida. Consultas de psicoterapia por carta. Uma vaga de cristal. Dizia Jean Oury que a normopatia era a nossa doença. Dizia Tosquelles que depois de conhecer pessoas normais nunca mais teve dificuldade em compreender os loucos. Estórias-máquinas para re-imaginar a política. Só através do desejo se pode ler o desejo.
Nesta apresentação Susana Caló e Godofredo Enes Pereira exploram uma polifonia de material documental e de arquivo, de vídeo, imagem, histórias orais e música, para apresentar a sua investigação sobre o inconsciente institucional e a ideia de uma ‘análise militante’.
BIOGRAFIAS
Susana Caló é investigadora em filosofia, psicopolítica e semiótica. Doutorou-se no Centro de Investigação em Filosofia Moderna Contemporânea, em Londres, com uma reconstrução da política da linguagem e da semiótica a partir do trabalho do ativista e psicanalista Félix Guattari. A sua investigação atual dedica-se a reconstruir histórias menores da psicanalise e psiquiatria nas suas intersecções com lutas político-sociais mais amplas, e a vida coletiva dos conceitos no pensamento francês do pós-guerra, através de histórias orais e construção de arquivos. É investigadora convidada no Centre for Humanities and Health, King's College London e co investigadora do projeto Pragmatic Genealogy of Concepts (KCL), financiado pela British Academy. É membro do coletivo Other Ways to Care, e co fundadora da plataforma Chaosmosemedia.
Godofredo Enes Pereira é arquiteto, investigador e diretor do mestrado em Environmental Architecture no Royal College of Art, em Londres. É doutorado pelo Centre for Research Architecture da Goldsmiths University London. Na última década, tem vindo a desenvolver investigação, publicações e exposições sobre arquitetura ambiental, territórios existenciais e equipamentos coletivos. É co investigador no projeto Scales of Climate Justice com financiamento da British Academy e fundador do GIT/Grupo de Investigação Territorial.
Desde 2017, Susana Caló e Godofredo Pereira trabalham no livro CERFI. Análise militante, Equipamento coletivo e Programação Institucional, com publicação prevista para 2024, pela Minor Compositions.
15 OUT | 18H00 | REITORIA DA UNIVERSIDADE DO PORTO / CASA COMUM | 30’
MISCHA TWITCHIN
Neste ano em que se assinala o aniversário da sua morte, como é que Michel Foucault ainda nos interpela? Além do envolvimento teórico da sua investigação – que nos convida a pensar com ele e não apenas sobre o seu trabalho – persiste o legado das suas transmissões de rádio, nas quais nos fala de forma literal. Esta apresentação propõe um diálogo com a presença ausente de Foucault, evocando o corpo tanto na imagem refletida quanto na voz, explorando o seu ensaio sobre “o corpo utópico” (Le corps, lieu d’utopies) e as discussões nos seus últimos seminários sobre “as estruturas da reflexividade”. Estes temas serão justapostos numa curta-metragem com fotografias de esculturas africanas de uma exposição no Musée du Quai Branly.
BIOGRAFIA
Mischa Twitchin é professor sénior no Departamento de Teatro e Performance da Goldsmiths, Universidade de Londres. Contribuiu com capítulos para várias coletâneas, bem como com artigos em revistas académicas como Memory Studies, Contemporary Theatre Review e Performance Research (um número desta última, “On Animism”, 24.6, do qual também foi coeditor). O seu livro, The Theatre of Death – the Uncanny in Mimesis: Tadeusz Kantor, Aby Warburg and an Iconology of the Actor, foi publicado pela Palgrave Macmillan, e o volume que editou, Wittgenstein and Performance, pela Rowman and Littlefield.
15 OUT | 18H30 | REITORIA DA UNIVERSIDADE DO PORTO / CASA COMUM | SALÃO NOBRE | 30’
SARA CARINHAS
Desenhado em resposta ao desafio do “Family Film Project”, esta será uma
performance-revisitação do espectáculo “Última Memória” (estreado em 2023 e neste
momento em digressão) - torcendo o seu interior para dentro de um encontro breve. Uma leitura que é também um ensaio. De novo as dúvidas, de novo a construção de outra peça, quase como se não tivesse chegado a existir o espectáculo original.
Abreviar a vida ou abreviar a história é emoldurá-la de um jeito que sempre deixa coisas de fora. Tudo re-inventado mais uma vez. Onde fica a mais pequenina matrioska de nós, se formos perdendo frames da nossa vida? Que construção fica de quem somos? Que imagem?
Que figura é essa, sem ter onde se agarrar?
BIOGRAFIA
Lisboa, 1987. Intérprete, encenadora, dramaturga, escritora, diretora de atores e professora.
Trabalhou em teatro, cinema, televisão e música com Adriano Luz, Alberto Seixas Santos, António Zambujo, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Clã, João Mário Grilo, Manoel de Oliveira, Manuel Mozos, Marco Martins, Margarida Cardoso, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Ricardo Pais, Rita Redshoes, Tiago Guedes e Valeria Sarmiento. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, por Coisa Ruim (2008). Em 2015 foi premiada com o Globo de Ouro de melhor atriz. Em televisão participou em séries como 3 Mulheres, Sara e Doce, tendo sido diretora de actores de “Terapia”, e responsável pela direcção de casting e direcção de actores de Snu, ambos de Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca As Ondas (2013), Orlando (2015), e Limbo (2019). Escreveu, dirigiu e interpreta Última memória (2023) - em digressão.
Publica o seu primeiro livro Imprudente luto em 2023.
15 OUT | 19H00 | REITORIA DA UNIVERSIDADE DO PORTO / CASA COMUM | LABORATÓRIO FERREIRA DA SILVA | 30’
SÓNIA CARVALHO
Lavar qualquer coisa é um ritual de purificação intemporal. É também um símbolo para a limpeza e purificação do comportamento da psique, bem como, dos ciclos de renovação da vida-morte-vida.
Em Observar os sons da lua e da água. E os que vêm de dentro, os gestos performativos de um corpo de mulher que lava e esfrega, orientados pelo arquétipo de Héstia, que personifica a “guardiã da casa”, são aqui subvertidos: em gestos frenéticos e pujantes executados ora com fricções de um corpo que varre o chão, ora, com as roupas que lavam as costas, o vestido que devolve o brilho da lua, a manga de um casaco que esfrega as coxas e a púbis, e, o cabelo que afaga as mãos.
Os sons produzidos e amplificados, assemelham-se ao uivar de um lobo, ao ranger dos dentes, ao chiar de uma porta, a par do rufar do adufe e da voz da cantadeira, conduzem uma jornada ritualista — a um mundo abaixo das árvores.
“Porque, no território da Baba Yaga há coisas a voar à noite, e que despertam de novo ao raiar da aurora, todas elas intimadas ou convidadas pela natureza instintiva selvagem. Há os ossos dos mortos que ainda falam, e há ventos, destinos e sóis, lua e céu, todos a viverem dentro do seu enorme baú.”
Estés, Clarissa Pinkola, “Mulheres que correm com os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem”, Editora Marcador, Barcarena, 2016, p. 120.
Performance by Sónia Carvalho; with the collaboration of Albrecht Loops, Music and Sound Designer; video by Zhang Qinzhe, and the participation of the Cantadeiras from the Ethnography and Folklore Centre of the University of Porto.
BIOGRAFIA
Sónia Carvalho (1978, PT). Artista plástica, professora, investigadora [ID+ (UA/DeCA] e CIEBA]. Doutora em Belas-Artes, especialidade de Pintura, pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, com bolsa de investigação pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Mestre em Desenho e Técnicas de Impressão pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Licenciada em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha do Instituto Politécnico de Leiria. E foi bolseira do programa Erasmus pela Faculdade de Belas Artes da Universidade Complutense de Madrid.
Sónia Carvalho desenvolve uma prática transdisciplinar, da performance ao vídeo, da meditação à pintura, centrada na pesquisa da represent(ação) do corpo e do rito e no estudo dos símbolos e arquétipos do universo espiritual feminino, no contexto da arte e cultura contemporâneas (nomeadamente, na interação entre arte e tecnologia - para a criação da imagem e imagens em movimento).
Artista representada pela galeria de arte contemporânea Zet Gallery, UmbigoLab magazine e ANAMNESE. Artista galardoada, destacando-se com o prémio de aquisição da XXII Bienal de Arte de Cerveira, 2022. Expõe o seu trabalho desde 2002. Tem obra plástica em várias coleções portuguesas, destacando-se a Fundação PLMJ, a Fundação Bienal de Cerveira, e a Associação Cultural EMERGE. Com o projeto artístico Struggle Like A (Wo)Man #1, 2019, foi selecionado ao abrigo do programa de estímulo à criação promovido pela Câmara Municipal de Torres Vedras, Portugal; no mesmo ano participou no workshop Cleaning The House da artista Marina Abramovic, na Grécia. Em 2020, participou na primeira residência digital — a residência artística internacional OCA (1.ª versão digital) – Transmetatlanticus, Brasil/Portugal, produzida pela associação EMERGE em parceria com a Casa Niemeyer – Universidade de Brasília. Tem participado em vários eventos internacionais como conferencista e como artista.
17 OUT | 21H15 | BATALHA CENTRO DE CINEMA - SALA 1 | 25’
BEN RUSSELL
Síntese analógica como uma ferramenta de conjuração: Uma montanha surge, um cume invisível aparece. Somos terra e a montanha é terra, e subimos eternamente por um caos de encostas onde a sinestesia é sentimento, o mapeamento é modelagem, o volume (som) é volume (espaço), e a forma de onda é o canto da montanha.
BIOGRAFIA
Ben Russell (1976) é um artista, cineasta e curador americano cujo trabalho se situa na interseção entre etnografia e psicadelismo. Os seus filmes e instalações dialogam diretamente com a história da imagem documental, oferecendo uma investigação temporal sobre o transe como fenómeno. Russell foi um dos artistas expositores na documenta 14 (2017) e o seu trabalho foi apresentado no Centre Georges Pompidou, no Museum of Modern Art, na Tate Modern, no Museum of Modern Art Chicago, no Festival de Cinema de Veneza e na Berlinale, entre outros. Recebeu a Bolsa Guggenheim (2008), de um Prémio Internacional da Crítica FIPRESCI (IFFR 2010, Gijón 2017), estreou a sua segunda e terceira longa-metragens no Festival de Cinema de Locarno (2013, 2017) e venceu o Grande Prémio Encounters no Festival de Cinema de Berlim (2024). Os projetos curatoriais incluem Magic Lantern (Providence, EUA, 2005-2007), BEN RUSSELL (Chicago, EUA, 2009-2011), Hallucinations (Atenas, Grécia, 2017) e Double Vision (Marselha, França, 2024-). Atualmente, reside em Marselha, França.