CONTEXTO DO FESTIVAL
Assistimos atualmente a uma revolução profunda no modo de relacionamento com as tecnologias da imagem, só equiparável à popularização da televisão e do vídeo durante a segunda metade do século XX, ou ao florescimento do cinema durante a primeira metade. Tal como nas revoluções anteriores, o modo como desenhamos as nossas narrativas vivenciais e sociais foi fortemente abalado: de facto, é através das novas tecnologias digitais que, cada vez mais, construímos o nosso espelhamento, o nosso lugar, a nossa própria individualidade, seja através do que tornamos público, seja através do arquivo da intimidade.
A revolução em curso tem duas valências interligadas: do lado do consumo, assistimos à multiplicação exponencial dos ecrãs e das fontes mediáticas; do lado da produção, multiplicam-se os dispositivos de registo, de vigilância, de memória. Ambas as valências suscitam desconfianças: fala-se hoje de excesso de informação, de banalização e frivolidade das imagens, e fala-se também da ameaça de um sistema panótico generalizado. Mas a informação pode ser filtrada e o sistema panótico pode oferecer toda uma nova jazida experiencial, inclusive no campo da arte. Na era panótica, eis que surge uma oportunidade inédita para a estetização da experiência e da vida.
Como é evidente, esta inflexão não pode deixar de abalar um certo ascetismo do cinema, das suas linguagens e das suas instituições. O suporte videográfico deixou há muito de ser marginalizado pelo seu status funcionalista, tendo-se mesmo tornado um dos suportes mais característicos da pós-modernidade artística: os ecrãs disseminaram-se pelos espaços de exposição, fundando novas modalidades da arte, tornando-se eles próprios esculturas tecnológicas; e mesmo o uso mais descomprometido destes dispositivos – com o típico estilo amadorista e voyeurístico dos chamados home videos – é continuamente apropriado e integrado no academismo cinematográfico, reeducando-o.
Mas, acima de tudo, surgiram novas formas de contar histórias, novos olhares, novos acessos a domínios historicamente inacessíveis. Um desses domínios, talvez o mais insuspeito de todos, é o da família, aqui entendida não propriamente como zona temática mas como metáfora da intimidade. A família desenha a última fronteira do privado: ela estende-se para além da sexualidade e da individualidade, e pode mesmo expandir-se até assumir a forma de uma comunidade, mas retém sempre uma aura de interdição, de choque contra a alteridade e a publicidade. Daqui advirá porventura o fascínio que ela tantas vezes suscita. De um lado, constatamos a sua sacralidade, a sua força para deliberar a identidade e a propriedade; do outro lado, constatamos a sua erogenia natural, como um apelo cúmplice ao olhar voyeurístico por parte de quem não pertence à mesma domus, ao mesmo espaço familiar. Em suma, o erógeno liga-se ao confronto com a intimidade (alheia); e a intimidade, no seu sentido mais abrangente, converge com o conceito de família.
É este espaço de intimidade que está hoje a ser continuamente transgredido a partir de dentro pela avalanche de novos dispositivos e redes digitais. Mas não se trata propriamente de alertar aqui contra uma permissividade negligente das sociedades contemporâneas, e muito menos contra um cenário distópico de falência da intimidade: esta encontrará sempre o seu espaço próprio, mesmo que tenha de manter-se em constante deslocamento. Trata-se sim de caminhar sobre essa linha divisória entre o público e o privado, entre a alteridade e a identidade. É justamente o espaço tensional destas dicotomias – hoje governado por toda uma panoticotopia tecnológica – que nos importa aqui observar e destacar. Mas devemos fazê-lo sem que o nosso próprio olhar destrua o cenário observado. Ora, um olhar tão delicado, tão respeitador, só poderá ser estético.
Neste panorama, o Family Film Project surge como um ciclo de cinema focado na fronteira entre o público e o privado, entre o popular e o íntimo, entre o global e o local, mas também entre o mainstream e o alternativo, entre o dominante e o precário, ou ainda entre a performatividade (associada tendencialmente à ficção) e o registo documental (que tende a associar-se ao real). Ao colocar-se sobre a imensa linha divisória que atravessa estas zonas tensionais, o Family Film Project visa encontrar pontos de contacto, vias de entrosamento e comunicação, mas sem nunca render-se a nenhum dos lados, sem se politizar. A linha que se pretende trilhar não é a fileira de um conflito, nem tão pouco constitui um problema teórico. Não se trata, por exemplo, de pensar o limiar entre o documentário e o filme ficcional, ou de repensar o estatuto das produções independentes e dos vídeos amadores face ao cinema popular e ao blockbuster. Não se trata igualmente de apelar ao resgate dos valores da privacidade e da família, e muito menos de elegê-los enquanto temas concretos. O objetivo deste ciclo estará sempre ligeiramente recuado em relação a tais objetos e discussões, mesmo que também os envolva e acabe por solicitá-los. Trata-se, pelo contrário, de dar espaço a essa zona fértil, cada vez mais fértil, onde a vida se funde com o registo vivencial, onde o real é também performativo e a performance é também real, onde, enfim, a experiência mais íntima pode dar-se a ver sem que isso lhe destrua a intimidade.
Filipe Martins (set 2014)